Os desafios do Poder Judiciário e a devolução do ICMS: arrecadação ou estabilidade do sistema jurídico?

Desde a promulgação da Constituição de 1988, tem crescido progressivamente a importância do Poder Judiciário na sociedade brasileira. Não apenas os cidadãos passaram a demandar cada vez mais, mas também importantes questões da vida pública nacional têm sido levadas aos tribunais. Esperava-se então que o juízes, por serem profissionais qualificados e analisarem o Direito de forma técnica, profeririam decisões iguais para todos em casos semelhantes, inclusive para o futuro. A interpretação do Direito é, porém, algo distante de neutra ou unívoca. As palavras têm significados múltiplos e são interpretadas por pessoas dotadas de concepções de mundo distintas, as quais influenciam a sua leitura dos textos legais. O resultado é sentido pelos cidadãos, que reclamam – com razão – que as decisões judiciais carecem de coerência e de estabilidade, o que denominam pejorativamente como “loteria judicial”.

Embora essa alcunha seja um tanto exagerada, é fato que há um problema sério a ser sanado. Para tanto, legisladores, doutrina e julgadores têm esforçado-se para reestruturar as funções dos tribunais, especialmente atribuindo às cortes superiores (STF e STJ) a responsabilidade de proferir os chamados “precedentes judiciais”, decisões que devem necessariamente ser observados nos âmbitos judicial e administrativo.

Contudo, a busca por coerência e estabilidade nas decisões tem um grande adversário: o próprio Estado. A título de exemplo, o STF recentemente fixou a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS”. Embora a decisão imponha a repetição dos valores indevidamente recolhidos, a Fazenda Nacional postula agora que os seus efeitos sejam modulados no tempo, isto é, que incidam somente após o julgamento do último recurso interposto. O argumento fazendário: relevante impacto econômico, ou seja, o Fisco não quer devolver os recursos que tomou indevidamente dos contribuintes porque, em suma, o valor é muito significativo. Em outras palavras, o próprio Estado pressiona o Poder Judiciário a abdicar da coerência e da estabilidade da sua jurisprudência – bem como ignorar a própria Constituição – para que deixe assim de arcar com as suas responsabilidades e não devolva o que não lhe pertence. Não é razoável franquear postura inconstitucional ao Estado e viabilizar manobras processuais com a finalidade de postergar o cumprimento das obrigações estatais, já há muito negligenciadas. Ademais, caso o STF adote a posição da Fazenda, qual postura os demais tribunais deverão seguir? Os governos estaduais também poderão tomar dos contribuintes mais do que lhes é devido sem o risco de ter que devolver posteriormente? Como estabelecer um sistema jurídico operacional e eficiente se o Estado é o primeiro a buscar exceções?

O que se constata, em suma, é que um sistema jurídico coerente e estável exige uma postura correspondente de todos os membros da sociedade – inclusive do Estado –, cabendo aos tribunais superiores apresentar soluções constitucionalmente fundamentadas, as quais devem ser respeitadas pelas instâncias inferiores e que possam – e sejam – aplicadas pelas próprias cortes superiores nos casos futuros. Esse, diga-se, é o tema da recente pesquisa pós-doutoral que realizei na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e, simultaneamente, na PUCRS, sob o título “O papel do Bundesgerichtshof e do Superior Tribunal de Justiça como cortes formadoras de precedentes judiciais e a unidade do direito na Alemanha e no Brasil”. Trata-se de estudo comparado dos papéis e procedimentos adotados pelo Tribunal Federal alemão e pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro como cortes comprometidas com o desenvolvimento e unidade do Direito. O estudo será publicado em breve, tanto na Alemanha quanto no Brasil, e espera-se que colabore como crítica propositiva para o melhor funcionamento das cortes superiores brasileiras e do sistema jurídico em geral.

*Artigo publicado na Revista We nº 33 de Março de 2020.

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